Inquietação
Abril 3, 2021

 
 

Mais um sábado enevoado

na nossa vida comum.

O pássaro colorido

já não canta. Talvez porque se lembre

que é mais uma Páscoa solitária

que nos espera.

Até quando persistirá este monstro invisível

a inquietar-nos as vidas?

Estamos cansados, tristes e de luto.

O Ressuscitado dá-nos esperança,

mas este Calvário prolongado

mina-nos as forças…

Diana Sá

Adieu tristesse
Fevereiro 11, 2021

Adieu tristesse

Bonjour tristesse

Tu es inscrite dans les lignes du plafond

Tu es inscrite dans les yeux que j’aime

Tu n’es pas tout à fait la misère

car les lèvres les plus pauvres te dénoncent

par un sourire

Bonjour tristesse

Amour des corps aimables

puissance de l’amour

dont l’amabilité surgit

comme un monstre sans corps

tête désappointée

Tristesse beau visage

Paul Éluard

Livro de Horas
Maio 7, 2017

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
de ter raízes no chão
esta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal Céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!


Miguel Torga
, em ‘O Outro Livro de Job’

?
Abril 9, 2012

Quem fez ao sapo o leito carmesim

de rosas desfolhadas à noitinha?

E quem vestiu de monja a andorinha,

e perfumou as sombras do jardim?

.

Quem cinzelou estrelas no jasmim?

Quem deu esses cabelos de rainha

ao girassol? Quem fez o mar? E a minha

alma a sangrar? Quem me criou a mim?

.

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?

Santa Teresa em místicos arroubos?

Os monstros? E os profetas? E o luar?

.

Quem nos deu asas para andar de rastros?

Quem nos deu olhos para ver os astros

– sem nos dar braços para os alcançar?

Florbela  Espanca

Fundo do mar
Agosto 11, 2011

No fundo do mar há brancos pavores,
onde as plantas são animais
e os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
a agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
no desalinho
dos seus mil braços,
uma flor dança,
sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Obra Poética I