Viagem
Março 18, 2024


Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá

vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao

dicionário e tiro as palavras que me servirão

de passaporte: o equador, uma linha

de horizonte, a altitude e a latitude,

um lugar de passageiro insistente. Dizem-me

que não preciso de mais nada; mas continuo

a encher a mala. Um pôr-do-sol para que

a noite não caia tão depressa, o toque dos teus

cabelos para que a minha mão os não esqueça,

e aquele pássaro num jardim que nasceu

nas traseiras da casa, e canta sem saber

porquê. E outras coisas que poderiam

parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase

indecisa a meio da noite, a constelação

dos teus olhos quando os abres, e algumas

folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência

me vem ditar. E se me disserem que tenho

excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,

e ficarei só com a tua imagem, a estrela

de um sorriso triste, e o eco melancólico

de um adeus.

Nuno Júdice

Solidão
Julho 18, 2022

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? – me perguntarão.
– Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação…
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra…)

Quero solidão.

soledad_y_tristeza_by_magdalena220

Cecília Meireles

Calvário
Abril 15, 2022

Hora a hora,

esperamos notícias más.

O coração, combalido de tantas súplicas,

contrai-se e aguarda o próximo golpe…

.

“Meu Deus, por que me abandonaste?”,

grita, caído de desesperança…

Que posso eu fazer, um nada entre os outros?

.

O calvário que eles sobem

atinge-nos por meio de imagens

desprovidas de razão

nestes dias de sol…

Diana Sá

Cacos
Fevereiro 1, 2022

Fragmentos, sim, fragmentos, mas de quê?

Que formaremos juntos, nós, pedaços?

Que imagem, qual visão que não se vê

nascerá da união dos nossos traços?

.

Nós, cacos, nós, partidos, nós, a falta

do resto, da espantosa explicação,

no que daremos, fim que aos olhos salta,

e quem nos juntará? Qual ser? Qual mão?

Alexei Bueno

No sorriso louco das mães
Março 13, 2021

  No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados

e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

 Herberto Helder   em    ‘Excerto do poema «Fonte», publicado em A Colher na Boca, 1961’

Carta a Ângela
Novembro 30, 2020

Para ti, meu amor, é cada sonho

de todas as palavras que escrever,

cada imagem de luz e de futuro,

cada dia dos dias que viver.

.

Os abismos das coisas quem os nega,

se em nós abertos ‘inda em nós persistem?

Quantas vezes os versos que te dou

na água dos teus olhos é que existem!

.

Quantas vezes chorando te alcancei

e em lágrimas de sombra nos perdemos!

As mesmas que contigo regressei

ao ritmo da vida que escolhemos!

.

Mais humana da terra dos caminhos

e mais certa dos erros cometidos,

foste de novo, e sempre, a mão da esperança

nos meus versos errantes e perdidos.

.

Transpondo os versos vieste à minha vida

e um rio abriu-se onde era areia e dor.

Porque chegaste à hora prometida

aqui te deixo tudo, meu amor!

 Wherever

Carlos de Oliveira

O Espelho
Abril 7, 2019

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu. 

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

espelho 2

 Mia Couto

Deito na terra
Novembro 6, 2018

Deito na terra os grãos de sonho

peço-te que os fragmentes

como uma bomba dentro do meu peito.

Assim, sei que te poderei esquecer…

como uma imagem difusa na mente cansada,

ou um aroma indecifrável

adormecido nas mãos enrugadas

de uma espera dorida e milenar.

.

Estou envolvida por esse silêncio dormente

que abre as portas à madrugada

e me encosta dentro dessa cama

cujo saco amarfanho

com os dedos quebrados de tentativas falhadas,

no desespero da insónia.

.

Abraço o vazio com a força do frio

percorre-me o avesso do ser,

lambo as gotas que fervilham na pele despida

e os grãos são sementes por fecundar…

O teu corpo é estéril.

Já não me estremece nem abre os segredos da noite

onde fomos gemido e respiração ofegante.

.

Fechei a concha.

Voei para sul com sonhos na bagagem.

nesse mundo com outros mundos onde só eu pertenço

e onde nós já não temos espaço.

conchas.JPG

Carla Marques

Na água
Julho 7, 2017

O reflexo da árvore.

Ninguém toca na sua margem.

Permanece. Realidade inteira.

Enquanto a árvore,

ardil dos sentidos,

se desfaz

quando alguém agita

a sua imagem.

Tranquilidade

Pedro Mexia

2º Soneto de Amor da Hora Triste
Janeiro 11, 2017

 

Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro

do que tu – não deixes fechar-me os olhos

meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos

e ver-te-ás de corpo inteiro

.

como quando sorrias no meu colo.

E, ao veres que tenho toda a tua imagem

dentro de mim, se, então, tiveres coragem,

fecha-me os olhos com um beijo. Eu, Marco Pólo,

.

farei a nebulosa travessia

e o rastro da minha barca

segui-lo-ás em pensamento. Abarca

.

nele o mar inteiro, o porto, a ria…

E, se me vires chegar ao cais dos céus,

ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.

Mar azul

Álvaro  Feijó