As pequenas gavetas do amor
Fevereiro 15, 2024

Se for preciso, irei buscar um sol
… para falar de nós:
ao ponto mais longínquo
do verso mais remoto que te fiz

Devagar, meu amor, se for preciso,
cobrirei este chão
de estrelas mais brilhantes
que a mais constelação,
para que as mãos depois sejam tão
brandas
como as desta tarde

Na memória mais funda guardarei
em pequenas gavetas
palavras e olhares, se for preciso:
tão minúsculos centros
de cheiros e sabores

Só não trarei o resto
da ternura em resto desta tarde,
que nem nos foi preciso:
no fundo do amor, tenho-a comigo:

quando a quiseres –

Ana Luísa Amaral

O que temos
Setembro 23, 2022

Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.

 

NUNO JÚDICE     em   O ESTADO DOS CAMPOS

Sofrimento
Maio 27, 2022

Esta distância, amor, é muito dura…

A esperança já não chega para acalmar

a dor de estar aqui, só, insegura,

longe de ti, amor, do meu lugar…

.

Sofro, pela ausência de ternura,

quando as tuas cartas tardam a chegar…

Vivo absorta, vivo à procura

não sei de quê, talvez do teu olhar…

.

Vens, meu amor, e eu espero a tua vinda

como a do sol, que me reconforta,

o azul do céu, o frémito do mar…

.

Não demores! Quinze dias ainda…

Vem, meu amor! Vem! Eu estou quase morta

de saudades. Vem! Quero-te abraçar!

Diana Sá

Ode à Paz
Março 7, 2022

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,

pelas aves que voam no olhar de uma criança,

pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,

pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,

pela branda melodia do rumor dos regatos,

pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,

pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,

pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,

elas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,

pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,

pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,

pelos aromas maduros de suaves outonos,

pela futura manhã dos grandes transparentes,

pelas entranhas maternas e fecundas da terra,

pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas

arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,

eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,

ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

abre as portas da História,

deixa passar a Vida!

Natália Correia, em “Inéditos (1985/1990)

Apelo
Novembro 12, 2021

Com a tarde a cair cheia de cor,-

folhas de Outono no Choupal deserto –

olha-te doutra maneira o meu amor,

e o teu coração pulsa mais perto…

.

Como que pede vida nesta hora

uma força que em nós nos era alheia…

Uma onda que vem pelo mar fora

à procura de paz na sua areia…

.

Nada que seja a flor duma impureza;

é qualquer coisa de mais belo e fundo:

sugestão do adeus da natureza

a pedir fé no mundo.

.

Miguel Torga

em “Diário II” Coimbra, 27 de Outubro de 1942

Sentou-se
Junho 12, 2021

gostava muito de se sentar
e ficar assim a olhar o mar
 
um livro
poisado nos braços
os olhos pendurados no horizonte
 
como era imensa a janela
incomensurável a casa 

A.H.Cravo

Versos
Setembro 27, 2020

Versos! Versos! Sei lá o que são versos…

Pedaços de sorriso, branca espuma,

gargalhadas de luz, cantos dispersos,

ou pétalas que caem uma a uma…

.

Versos!… Sei lá! Um verso é o teu olhar,

um verso é o teu sorriso e os de Dante

eram o teu amor a soluçar

aos pés da sua estremecida amante!

.

Meus versos!… Sei eu lá também que são…

Sei lá! Sei lá!… Meu pobre coração

partido em mil pedaços são talvez…

.

Versos! Versos! Sei lá o que são versos…

Meus soluços de dor que andam dispersos

por este grande amor em que não crês…

flor branca

Florbela Espanca

Acidentes de Guerra
Junho 7, 2020

Sacudo grão levíssimo
de cima do papel

Não sei se pó,
se uma pequena cinza
que assim se insinuou
neste caderno

a emoção, passado, defesa, antes na prateleira,preso a outros cadernos, outros livros,
esquecido do olhar
e das pequenas emoções
de dentro.É livre agora,
e o grão que projectei no ar
entre polegar e dedo médio em riste:
lança-chama de fluídos inflamáveis

com passado a assaltar,
sem defesa possível de vencer,
nem acertado alvo
que resista

livros 1

Ana Luísa Amaral    em    What’s In a Name

Apontamento
Março 13, 2020

Vida – o único meio
de se revestir de folhagem,
recuperar o fôlego na areia,
levantar voo batendo as asas;
.
ser cão
ou afagar-lhe o pêlo quente;
.
distinguir a dor
de tudo o que não a é;
.
caber nos acontecimentos,
perder-se nas paisagens,
procurar o mais ínfimo dos enganos.
.
Ocasião excepcional
para, por um instante, recordar
o que se conversou
junto do candeeiro apagado;
.
pelo menos uma vez,
tropeçar na pedra,
molhar-se na chuva,
perder as chaves na relva;
.
seguir com o olhar uma faísca no vento
.
e sem parar algo de importante
não saber.

Wislawa Szymborska

Germinação
Janeiro 7, 2020

Entre duas ruas paralelas
nossas conexões transversais aproximaram
o contato de nossos lábios e de nossas mãos
que se transformam em uma arte de expressão geométrica
com traços de cubismo:
vários vértices com sensações de infinitude
vários ângulos com encaixe de elevada estruturação

aprofundamos em anestesia
enquanto verticalizávamos nossos sentidos
investindo em uma profundidade de sentimentos superior
aos abismos de corações e mentes distraídas

nossa troca de olhares ficou surrealista:
teu cheiro penetrando em minhas vísceras
depositando em meu tecido adiposo
desregulando minha frequência cardíaca
com a profunda vibração de tuas cordas vocais
abraçando meu miocárdio

nossos corpos em contato se tornaram um único abrigo
nossa confluência de ideias formaram fortalezas de harmonia
nossa taxa metabólica igualou nossas funções vitais
e fomos capazes de rejuvenescer
simultaneamente
lado a lado

enquanto me abraçava revitalizando
cada célula corporal,
aprofundamos
ultrapassando os limites para mergulhos recreacionais

molhamo-nos ao toque do mar
secamo-nos à luz do sol
pulsantes:
amadurecemos em frutos

olhosnosolhos

Larissa Vahia