Se não tenho outra voz
Janeiro 30, 2024

Se não tenho outra voz que me desdobre

em ecos doutros sons este silêncio,

é falar, ir falando, até que sobre

a palavra escondida do que penso.

.

É dizê-la, quebrado, entre desvios

de flecha que a si mesmo se envenena,

ou mar alto coalhado de navios

onde o braço afogado nos acena.

.

É forçar para o fundo uma raiz

quando a pedra cabal corta caminho,

é lançar para cima quando diz

que mais árvore é tronco mais sozinho.

.

Ela dirá, palavra descoberta,

os dito do costume de viver:

esta hora que aperta e desaperta,

o não ver, o não ter, o quase ser.

José Saramago

É preciso plantar
Novembro 10, 2023






É preciso plantar mama é preciso plantar
é preciso plantar nas estrelas e sobre o mar
nos teus pés nus e pelos caminhos
é preciso plantar nas esperanças proibidas
e sobre as nossas mãos abertas na noite presente
e no futuro a criar por toda a parte
mama é preciso plantar
a razão dos corpos destruídos
e da terra ensanguentada
da voz que agoniza
e do coro dos braços
que se erguem por toda a parte
por toda a parte
por toda a parte
mama por toda a parte
é preciso plantar a certeza do amanhã feliz
nas carícias do teu coração
onde os olhos de cada menino
renovam a esperança
sim mama é preciso é preciso plantar
pelos caminhos da liberdade
a nova árvore da Independência Nacional

Kalungano
(Marcelino dos Santos)





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O que temos
Setembro 23, 2022

Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.

 

NUNO JÚDICE     em   O ESTADO DOS CAMPOS

Solidão
Julho 18, 2022

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? – me perguntarão.
– Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação…
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra…)

Quero solidão.

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Cecília Meireles

Deserto
Outubro 12, 2021

Cheguei aqui com o percurso das caravanas

trago comigo o silêncio dos caminhos

aqueles que cruzam o Rub-El-Khali

e viram demoradamente as feridas da Terra

(…)

O silêncio é o segredo do deserto

e os beduínos poupam nas palavras.

(…)

Não há rasto das palavras no deserto

Sentimos que os deuses são secos e as palavras escassas.

Sabemos que os ossos dos mortos repelem a luz

e sonhamos com a água para o prazer e o repouso.

Quando a noite chega caminhamos na direcção das estrelas

caminhamos em busca de nós próprios

nunca fomos tão livres e tão densos.

Somos a liberdade que marcha pela noite das estrelas

num caminho de água e tâmaras.

António Costa Silva

Pequena elegia de Setembro
Setembro 6, 2021

Não sei como vieste,

mas deve haver um caminho

para regressar da morte.

.

Estás sentada no jardim,

as mãos no regaço cheio de doçura,

os olhos pousados nas últimas rosas

dos grandes e calmos dias de setembro.

.

Que música escutas tão atentamente

que não dás por mim?

Que bosque, ou rio, ou mar?

Ou é dentro de ti

que tudo canta ainda?

.

Queria falar contigo,

dizer-te apenas que estou aqui,

mas tenho medo,

medo que a música cesse

e tu não possas mais olhar as rosas.

Medo de quebrar o fio

com que teces os dias sem memória.

.

Com que palavras

ou beijos ou lágrimas

se acordam os mortos sem os ferir,

sem os trazer a esta espuma negra

onde corpos e corpos se repetem,

parcimoniosamente, no meio de sombras?

.

Deixa-te estar assim.

ó cheia de doçura,

sentada, olhando as rosas,

e tão alheiajardim

que não dás por mim.

Eugénio de Andrade

Viagem
Julho 26, 2021

No caminho

havia um rio.

E o rio

tinha da navalha

o apurado fio.

E cortou em dois o mundo.

Chamei o peixe.

E o peixe bebeu o rio.

.

No céu

havia nuvens.

Eram nuvens velhas, cansadas.

Chamei o pássaro.

E o pássaro comeu o céu.

.

Sobejou

sob os pés, a terra

e a sua imensidão.

Chamei o tempo.

E o tempo comeu o chão.

.

Sem terra, sem rio, sem céu,

não me restou

senão o vislumbrar

de um sonho.

.

E o sonho

foi ave e peixe,

foi tempo e foi céu.

Depois, aos poucos,

o sonho me devorou a vida.

.

E assim,

em mim,

nasceram todas as vidas.

anoitecer

Mia Couto    em    vagas e lumes

Carta a Ângela
Novembro 30, 2020

Para ti, meu amor, é cada sonho

de todas as palavras que escrever,

cada imagem de luz e de futuro,

cada dia dos dias que viver.

.

Os abismos das coisas quem os nega,

se em nós abertos ‘inda em nós persistem?

Quantas vezes os versos que te dou

na água dos teus olhos é que existem!

.

Quantas vezes chorando te alcancei

e em lágrimas de sombra nos perdemos!

As mesmas que contigo regressei

ao ritmo da vida que escolhemos!

.

Mais humana da terra dos caminhos

e mais certa dos erros cometidos,

foste de novo, e sempre, a mão da esperança

nos meus versos errantes e perdidos.

.

Transpondo os versos vieste à minha vida

e um rio abriu-se onde era areia e dor.

Porque chegaste à hora prometida

aqui te deixo tudo, meu amor!

 Wherever

Carlos de Oliveira

Hoje
Fevereiro 5, 2020

Hoje que a tarde é calma e o céu tranqüilo,
e a noite chega sem que eu saiba bem,
quero considerar-me e ver aquilo
que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo
que fui quem foi aquilo em torno meu,
salvo o que o vago e incógnito desejo
se ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo
minha atenção sobre quem fui de mim,
e nada de verdade em mim albergo
salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,
segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,
vários trazidos de outros mundos, e
no mesmo ponto espacial sensível
que sou eu, sendo eu por me ’star aqui ?

Serei eu, porque todo o pensamento
podendo conceber, bem pode ser,
um dilatado e múrmuro momento,
de tempos-seres de quem sou o viver ?

fp

 Fernando Pessoa

Antítese
Dezembro 17, 2018

Navego num largo mar de enganos,

guiado pela estrela cega do horizonte.

O meu destino está inscrito nestes anos

em que o tempo nasce de uma futura fonte.

.

Assim, o que foi ontem está para ser,

passado que vive num presente sem nós,

como o rio que, para correr, nasce na foz;

e tudo o que vi ainda está para se ver,

.

tal como o silêncio que fala nesta voz.

O caminho faz-se quando se está parado,

barco que anda sem haver vento;

.

e só quem está certo pode ser enganado

quando, ao pensar, perde o pensamento,

e em tudo o que sonha só vê o passado.

barco1-1

Nuno  Júdice