É preciso plantar
Novembro 10, 2023






É preciso plantar mama é preciso plantar
é preciso plantar nas estrelas e sobre o mar
nos teus pés nus e pelos caminhos
é preciso plantar nas esperanças proibidas
e sobre as nossas mãos abertas na noite presente
e no futuro a criar por toda a parte
mama é preciso plantar
a razão dos corpos destruídos
e da terra ensanguentada
da voz que agoniza
e do coro dos braços
que se erguem por toda a parte
por toda a parte
por toda a parte
mama por toda a parte
é preciso plantar a certeza do amanhã feliz
nas carícias do teu coração
onde os olhos de cada menino
renovam a esperança
sim mama é preciso é preciso plantar
pelos caminhos da liberdade
a nova árvore da Independência Nacional

Kalungano
(Marcelino dos Santos)





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Bocca della Veritá
Agosto 29, 2023

Existem palavras por nós ignoradas

vivem ao lado das que mais usamos

e nunca sabemos quando

uma delas em fuga

com a calibração precisa

surgirá para transtornar a neutralidade

.

a língua arrasta a noite ancestral

um vento de neve

cheio de folhas mortas

a idade que possuímos em segredo

sem que nenhuma documentação civil

a detecte

.

as línguas são portas

que se abrem rangendo

para coisas que não existem

José Tolentino de Mendonça

In tenebras
Fevereiro 1, 2023

Súbito, o estrondo e o brilho, e então renasce,

noite, o silêncio imáculo, a tua face.

Alexei Bueno

38
Novembro 29, 2022


Escrevo pássaros e nada sei
do corpo deles nem das suas
inclinações – nada sei do amor
tão pleno de falsificações. Se canto,
se escrevo assim às escuras na noite
do meu lençol
é porque não sei incorporar
os ruidos, os buracos da casa
nem olhar para o lado
e ver por dentro
o rosto amado, o sono
da filha – o sabor
da passagem do tempo.



Casimiro de Brito

Linda madrinha da melancolia
Outubro 10, 2022

Minha triste rolinha compungida

– saudade transmutada em burguesinha –

faz-me tanta tristeza a tua vida,

que triste – mais que o foi! – está a minha…

.

Minha triste rolinha compungida

– crepúsculo na alcova dum doente –

quem fosse no deserto dessa vida

chuva fecundadora, água corrente…

.

Minha triste rolinha compungida

– ó lágrima de amor feita mulher –

pudera eu ser, na tua dor sentida,

bálsamo que a fizesse adormecer…

.

Minha triste rolinha compungida

– linda madrinha da melancolia –

fosse eu, na tua noite erma e comprida,

estrela da manhã, e claro dia…

.

Minha triste rolinha compungida,

o mal de que padeces fosse-o eu…

seria a larva numa flor pendida,

seria o mal, bem sei – mas era teu…

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Minha triste rolinha compungida

– doce virgem das dores com sete espadas –

fosse-as eu todas! Tinha lá cabida

dentro do coração, por sete entradas!…

Augusto Gil

Trova do mês de Abril
Abril 26, 2022

Foram dias foram anos a lutar por um só dia.

Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía

com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia

na esperança de um só dia.

.

Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias.

Foi a vida (foram vidas). Foi a história (foram histórias)

mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)

por um só dia vivida.

.

Foi o tempo que passava como se nunca passasse.

E uma flauta que cantava como se a noite rasgasse

toda a vida e uma palavra liberdade que vivia

na esperança de um só dia.

.

Musa minha vem dizer o que nunca então se disse

esse morrer de viver por um dia em que se visse

um só dia e então morrer. Musa minha que tecias

um só dia dos teus dias.

tempo 3

Manuel  Alegre

Sempre que me procuro
Março 29, 2022

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,

pois há pedaços do meu ser que andam dispersos

nas sombras do jardim,

nos silêncios da noite,

nas músicas do mar,

e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos

nesta serena unção crepuscular

que lhes prolonga o trágico tresnoite

da vigília sem fim,

abro meu coração, como um jardim,

e desfolho a corola dos meus versos,

faz-me lembrar a alma que esteve em mim,

e que, um dia, perdi e vivo a procurar

nos silêncios da noite,

nas sombras do jardim,

na música do mar…

Hermes Fontes

Deserto
Outubro 12, 2021

Cheguei aqui com o percurso das caravanas

trago comigo o silêncio dos caminhos

aqueles que cruzam o Rub-El-Khali

e viram demoradamente as feridas da Terra

(…)

O silêncio é o segredo do deserto

e os beduínos poupam nas palavras.

(…)

Não há rasto das palavras no deserto

Sentimos que os deuses são secos e as palavras escassas.

Sabemos que os ossos dos mortos repelem a luz

e sonhamos com a água para o prazer e o repouso.

Quando a noite chega caminhamos na direcção das estrelas

caminhamos em busca de nós próprios

nunca fomos tão livres e tão densos.

Somos a liberdade que marcha pela noite das estrelas

num caminho de água e tâmaras.

António Costa Silva

Para ti
Outubro 4, 2021

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto, em “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”

Para ti
Outubro 4, 2021