Poema das nuvens fofas
Abril 14, 2024

Nos píncaros do Olimpo as nuvens pairam
como clara batida, fofa e crespa.
O Olimpo é um monte, e as nuvens, água
que as baixas temperaturas condensaram
em estrelados cristais.
Ali, atrás das nuvens, se instalaram
os deuses, em seus tronos marchetados
(pois se os grandes da Terra tinham tronos
com mais razão os deuses os teriam).
Ali, atrás das nuvens, planearam
o meu futuro,
sem saberem que as nuvens eram água.

Eram, de facto, água,
e como água caíram sobre a Terra.
Primeiro em fios breves, voluptuosos
como chuveiro tépido nas pálpebras;
depois em fios grossos,
em baraços, em cordas, em colunas,
cataratas do céu que o próprio céu ruíram
em bátegas cerradas.
Na precipitação das catadupas de água
envolveram-se os deuses na enxurrada,
deuses e tronos,
e com eles também o meu futuro.

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António Gedeão

Por onde a esperança
Janeiro 4, 2024

Eu quero uma estátua virada ao mar
uma estátua que se encha de sal
quando o vento caminhe

E que tome o tom verde das águas
e das algas que se lhe enrodilhem
junto às mãos e à face

Porque a única forma de ter uma estátua
é saber de antemão que ninguém
saberá quem ali se desfaz.

Glória de Sant’Anna


Ausência
Abril 24, 2023

Mal te deixo,

continuas em mim, cristalina

ou trémula,

ou inquieta, por mim mesmo ferida

ou cumulada de amor, como quando os teus olhos

se fecham sobre o dom da vida

que sem cessar te entrego.

.

Meu amor,

encontrámo-nos

sedentos e bebemos

toda a nossa água e o nosso sangue,

encontrámo-nos

com fome

e mordemo-nos

como o fogo morde,

deixando-nos em ferida.

.

Mas espera-me,

guarda a tua doçura.

eu te darei também

uma rosa.

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Pablo Neruda

Destino
Abril 4, 2023

Risco no chão um traço, à beira água:

não tarda que a maré o deixe raso.

Tal e qual o poema. É comum sorte

que areias e poemas tanto valham

ao vaivém da maré, vem-vem da morte.

José Saramago

Água selvagem
Novembro 3, 2021

alguma vez te disseram
baixinho
que sabes a água selvagem
que és tu a criatura
que me embaraça
que me faz sentir rio
sem margem
alguma vez alguém te deu
o que te disse eu?

neve

 Raul Cordeiro

Deserto
Outubro 12, 2021

Cheguei aqui com o percurso das caravanas

trago comigo o silêncio dos caminhos

aqueles que cruzam o Rub-El-Khali

e viram demoradamente as feridas da Terra

(…)

O silêncio é o segredo do deserto

e os beduínos poupam nas palavras.

(…)

Não há rasto das palavras no deserto

Sentimos que os deuses são secos e as palavras escassas.

Sabemos que os ossos dos mortos repelem a luz

e sonhamos com a água para o prazer e o repouso.

Quando a noite chega caminhamos na direcção das estrelas

caminhamos em busca de nós próprios

nunca fomos tão livres e tão densos.

Somos a liberdade que marcha pela noite das estrelas

num caminho de água e tâmaras.

António Costa Silva

Treme em luz a água
Fevereiro 19, 2021

Treme em luz a água.

Mal vejo. Parece

que uma alheia mágoa

na minha alma desce –

.

mágoa erma de alguém

de algum outro mundo

onde a dor é um bem

e o amor é profundo.

.

E só punge ver,

ao longe, iludida,

a vida a morrer

o sonho da vida.

Fernando Pessoa

Carta a Ângela
Novembro 30, 2020

Para ti, meu amor, é cada sonho

de todas as palavras que escrever,

cada imagem de luz e de futuro,

cada dia dos dias que viver.

.

Os abismos das coisas quem os nega,

se em nós abertos ‘inda em nós persistem?

Quantas vezes os versos que te dou

na água dos teus olhos é que existem!

.

Quantas vezes chorando te alcancei

e em lágrimas de sombra nos perdemos!

As mesmas que contigo regressei

ao ritmo da vida que escolhemos!

.

Mais humana da terra dos caminhos

e mais certa dos erros cometidos,

foste de novo, e sempre, a mão da esperança

nos meus versos errantes e perdidos.

.

Transpondo os versos vieste à minha vida

e um rio abriu-se onde era areia e dor.

Porque chegaste à hora prometida

aqui te deixo tudo, meu amor!

 Wherever

Carlos de Oliveira

Lágrima de preta
Junho 14, 2020

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
.
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
lágrima
António Gedeão

Na melancolia de teus olhos
Fevereiro 14, 2020

Na melancolia de teus olhos
eu sinto a noite se inclinar
e ouço as cantigas antigas
do mar.
.
Nos frios espaços de teus braços
eu me perco em carícias de água
e durmo escutando em vão
o silêncio.
.
E anseio em teu misterioso seio
na atonia das ondas redondas.
Náufrago entregue ao fluxo forte
da morte.

Vinicius de Moraes