O Exilado
Maio 26, 2023

E a mim próprio pergunto: Donde vieste

que nada o coração te prende e atrai

e achas sempre desolante, agreste,

quanto penetre nele ou dele sai?…

.

Qual é o paraíso que perdeste?

Que nostalgia é essa que em ti cai

e não te arranca nunca, acerca deste

abjecto mundo, um passo, um riso, um ai?…

.

Interrogo-me em vão. E não obstante,

tem por certo uma origem remontante

isto que às vezes fala no meu seio,

.

que escrevo às vezes, sem o ter pensado…

Vive dentro de mim um exilado

– e não me diz quem é, nem donde veio!!

Esta imagem tem um texto alternativo em branco, o nome da imagem é alone.jpg

Augusto Gil

Envolvimento
Março 26, 2023

Não sou alheio a nada.

Não é preciso falar de amor para transmitir amor.

Nem é preciso falar de dor para transmitir seu grito.

O que escrevo

resulta de meus armazenamentos ancestrais

e de meus envolvimentos com a vida.

Manoel de Barros.

Procura a rosa
Junho 13, 2022

Procura a rosa.

Onde ela estiver

estás tu fora

de ti.

Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça

ainda, sob tanta

metáfora, pode ser, e que quando

nela te vires te reconheças

como diante de uma infância

inicial não embaciada

de nenhuma palavra

e nenhuma lembrança.

Talvez possas então

escrever sem porquê,

evidência de novo da Razão

e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina em “A um Jovem Poeta”

Com a tua letra
Fevereiro 8, 2022

Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento

às coisas regulares e irregulares do mundo.

Ou também: eu envio o amor

sob a forma de muitos olhos e ouvidos

a explorar, a conhecer o mundo.

.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo

da escuridão do mundo.

Porque tudo se escreve com a tua letra.

amor_2

Fernando  Assis  Pacheco

Questões de princípio
Maio 25, 2020

Não me exijam
que diga
o que não digo

não queiram
que escreva
o meu avesso

não ordenem
que eu acene
o que recuso

não esperem
que me cale
e obedeça

suave

MARIA TERESA HORTA    em    ESTRANHEZAS (D. Quixote, 2018)

A um jovem poeta
Maio 13, 2020

 

Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

rosa aberta

Manuel António Pina     em     Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança

O Poeta
Outubro 22, 2018

O poeta não gosta de palavras:
escreve para se ver livre delas.

A palavra
torna o poeta
pequeno e sem invenção.

Quando,
sobre o abismo da morte,
o poeta escreve terra,
na palavra ele se apaga
e suja a página de areia.

Quando escreve sangue
o poeta sangra
e a única veia que lhe dói
é aquela que ele não sente.

Com raiva,
o poeta inicia a escrita
como um rio desflorando o chão.
Cada palavra é um vidro em que se corta.

O poeta não quer escrever.
Apenas ser escrito.

Escrever, talvez,
apenas enquanto dorme.

MIA COUTO

Primeiro: continuar. Segundo: começar
Abril 15, 2018

Se não escrevo, leio.
Não descanso até encontrar
o poema que me alivie.
Encontrarei palavras
que me emprestem sentido.

É um modo de sobrevivência que pratico,
procurar casas dentro de casa.
Transporto uma candeia discreta e vejo
nos poetas-irmãos e nos poetas-amantes,
sossego para as emoções que me fazem cerco.

Fecharei os olhos
quando me sentir iluminada por dentro.

livros 1

Marta Chaves
   em    Varanda de Inverno

Tanto que fazer
Novembro 9, 2017

Tanto que fazer !
Livros que não se lêem,
cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis…
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuvas,
e os mortos em redôma de cânfora.
( E uma canção tão bela ! )

Tanto que fazer !
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.

 

Foto de Graça Costa.

Poesia
Outubro 6, 2017

 

Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever,

no entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

escrita

Carlos Drummond de Andrade