Receita de Mulher
Março 12, 2024

Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que

se fechar os olhos ao abri-los ela não mais estará

presente com seu sorriso e suas tramas.

Que ela surja, não venha; parta, não vá
e que possua uma certa capacidade de emudecer
subitamente e nos fazer beber o fel da dúvida.
Oh, sobretudo que ela não perca nunca, não importa
em que mundo,não importa em que circunstâncias,
a sua infinita volubilidade de pássaro;
e que , acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça
de ave; e que exale sempre o impossível perfume;
e destile sempre o embriagante mel; e cante sempre
o inaudível canto da sua combustão;
e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
do efémero; e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita
de toda a criação inumerável.

o-tempo-passa4

Vinicius de Moraes

Se tu morresses
Agosto 2, 2021

Se tu morresses hoje, nada seria diferente.

Os poetas cantariam como sempre a noite bêbeda de sangue

por onde os vagabundos caminham de mãos vazias em silêncio.

De novo as aves levantariam vôo

para construir o ninho sobre as rochas ou as cerejeiras

e entoariam o canto azul da primavera

sem que isso fosse um requiem por ti.

.

Oh, se tu morresses hoje, nada mudaria.

Nem a cor das laranjas, nem os dedos do trigo, nem a boca da água.

Não choveria sangue. Não apodreceriam estrelas nos valados.

.

Sim, se tu morresses hoje, nada se alterava.

O vento continuaria o seu caminho solitário

e o mar voltaria a ajoelhar-se aos pés brancos das baías

ou a enfurecer-se nas costas escarpadas.

As andorinhas manteriam o luto

e o vento seria ainda a cor das florestas.

.

Se tu morresses hoje, meu amor,

eu esperaria por ti como te espero,

fingiria como agora que todos os minutos nos pertencem,

continuaria exactamente assim a minha solidão,

o canto inicial dessa mulher ausente

que eu procuro

e amo.

0sky-sea-uyuni

Joaquim Pessoa

Aqueles claros olhos
Maio 11, 2021

Aqueles claros olhos que chorando

ficavam, quando deles me partia,

agora que farão? Quem mo diria?

Se porventura estão em mim cuidando?

.

Se terão na memória, como ou quando

deles me vim tão longe de alegria?

Ou se estarão aquele alegre dia

que torne a vê-los, na alma figurando?

.

Se contarão as horas e os momentos?

Se acharão num momento muitos anos?

Se falarão co’as aves e co’os ventos?

.

Oh, bem aventurados fingimentos,

que nesta ausência tão doces enganos

sabeis fazer aos tristes pensamentos!

o-tempo-passa4

Luís de Camões

Nos teus dedos
Fevereiro 6, 2019

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.

mãos

Eugénio de Andrade

Ergo uma rosa
Maio 16, 2018

Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
como a lua não faz nem o sol pode:
cobra de luz ardente e enroscada
ou ventos de cabelos que sacode.

.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
o céu pontua de ninhos e de cantos,
bato no chão a ordem que decide
a união dos demos e dos santos.

.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
contra o frio da noite que se atreve,
e da seiva da rosa e do meu sangue

.
construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
quanto me dói de mágoas e assombros.

.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
neste cantar das aves nos meus ombros.

rosa

 

José Saramago 

Quando eu morrer
Fevereiro 20, 2014

Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.

Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis

que alagámos de beijos quando eram outras horas

nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse

de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa

ser apenas mais um poema – como esses que eu escrevia

assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu

tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

.

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,

trazem entre as penas a saudade de um verão carregado

de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas

brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores

que preferem a noite – porque a morte deve ser clara

com o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre

me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes

a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

.

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem

toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me

que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos

como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois

os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar

para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando

na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas

que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,

as penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

large

Maria do Rosário  Pedreira

escrevo-te a sentir tudo isto
Janeiro 21, 2014

escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da
fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva do lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar.

let it go

AL BERTO, em O MEDO (1987)

Sacode as nuvens
Julho 30, 2013

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
mesmo que os meus gestos te trespassem
de solidão e tu caias em poeira,
mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
e os teus olhos nunca mais possam olhar.

rosado

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN,  em  CORAL

Metamorfose
Março 14, 2013

fondo-bosque-de-secuoyas

Para a minha alma eu queria uma torre como esta
assim alta ,
assim de névoa acompanhando o rio.
Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.

E contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a chuva estaria
se eu soubesse ter…
na luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.

Jorge de Sena

Quase nada
Janeiro 8, 2013

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.

Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

Eugénio de Andrade.