Se não tenho outra voz
Janeiro 30, 2024

Se não tenho outra voz que me desdobre

em ecos doutros sons este silêncio,

é falar, ir falando, até que sobre

a palavra escondida do que penso.

.

É dizê-la, quebrado, entre desvios

de flecha que a si mesmo se envenena,

ou mar alto coalhado de navios

onde o braço afogado nos acena.

.

É forçar para o fundo uma raiz

quando a pedra cabal corta caminho,

é lançar para cima quando diz

que mais árvore é tronco mais sozinho.

.

Ela dirá, palavra descoberta,

os dito do costume de viver:

esta hora que aperta e desaperta,

o não ver, o não ter, o quase ser.

José Saramago

Dia Não
Dezembro 5, 2023

De paisagens mentirosas

de luar e de alvoradas

de perfumes e de rosas

de vertigens simuladas

.

Que o poema se desnude

de tais roupas emprestadas

seja seco seja rude

como pedras calcinadas.

.

Que não fale em coração

nem de coisas delicadas

que diga não quando não

que não finja mascaradas.

.

De vergonha se recolha

se as faces sentir molhadas

para seus gritos escolha

as orelhas mais tapadas.

.

E quando falar de mim

em palavras amargadas

que o poema seja assim

portas e ruas fechadas.

.

Ah que saudades do sim

nestas rimas desoladas.

José Saramago

A pedra que eu habito
Fevereiro 14, 2022





A pedra que eu habito
é um arco
um arco de pedra

Podes chamar-lhe buraco

No buraco
está o arco
do buraco

Queria mais que uma pedra
queria outra pedra

Invento uma pedra
para esta pedra

Invento outro arco
e outro
e outro ainda

Não saio do buraco

Atiro uma pedra
para ser flecha

Mas será flecha?
E será de fogo?

Saio do buraco
vou ao teu encontro
com a minha pedra

É uma pedra mesmo?
Inventada ou não
inventada e não
é a minha pedra

e por isso dou-ta
com o calor da mão

O prodígio é simples
uma pedra apenas
um buraco
um insecto
de súbito foge

Agora é que é teu

Se te dou a pedra
logo a pedra existe

Logo a pedra é pedra

A pedra que encontrei
quando ta quis dar
quando te encontrei

Se uma pedra existe
todo o mundo existe

Se esta pedra é pedra
logo tu existes

Todo o mundo habita
no gesto da mão
que te dá a pedra

Toma então a pedra
meu irmão

António Ramos Rosa

Destino
Junho 6, 2021

O lugar destes sítios

chama-se destino.

Com o seu enorme peso

de pedras e de visco.

.

Raramente se escutam as asas

e o vinho

ganha no corpo a morbidez

do linho.

.

Mas quem empunha o sabre

do destino?

Quem escuta a sua dor

não desatada?

.

Quem pensa que a torpeza

de um sonho de adivinho

se iguala à túnica branca

de um anjo que voava?

.

Este é o silêncio, se quer o mais veloz

que se enrosca febril

em sua capa.

Maria Teresa Horta

Ascensão
Abril 14, 2019

Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
– até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.

espiral

João Rui de Sousa

Entre mim e a vida
Março 8, 2019

Já não escrevo sem algo entre mim e a vida:

olho a paisagem,

há inúmeros campos,

regresso a casa pelas estradas de terra,

tropeço em cada pedra.

O sangue do horizonte circula

nas minhas veias,

mas canto a natureza entre mim e a vida.

.

Se volto ao refúgio das paredes domésticas,

surge o teu semblante

no percurso

(é uma realidade,

esqueci as personagens fictícias).

Quero dizer o rosto do último lugar

habitável

e pronuncio o teu nome, perdido.

.

Quando era menos incompleto

trabalhava os poemas

até ao silêncio,

para que dissessem o rumor inaudito,

agora vêm das nascentes

sem a contagem das sílabas.

Consciente da origem e do fim,

de nada separado,

digo milhares de palavras entre mim e a vida.

natureza_rio

Joel  Henriques

Poema do Silêncio
Janeiro 10, 2019

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
a carvão, a sangue, a giz,
sátiras e epigramas nas paredes
que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
que nada me dariam do infinito que pedi,
– que ergui mais alto o meu grito
e pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
eis a razão das épi-trági-cómicas empresas
que, sem rumo,
levantei com sarcasmo, sonho, fumo…

O que buscava
era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais, ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
sair deste meu ser formal e condenado,
erigi contra os céus o meu imenso Engano
de tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
procurei fugir de mim,
mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
sofro por este chão que aos pés se me pegou,
sofro por não poder fugir.
sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição…)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
nunca os usei nem usarei,
se nada do que levo a efeito vale,
que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
era por um de nós. E assim,
neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
do que a própria imensa dor
de compreender como é egoísta
a minha máxima conquista…

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
e o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
e sobre mim de novo descerá…

Sim, descerá da tua mão compadecida,
meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
saciarão a minha fome.

José Régio  em  ‘As Encruzilhadas de Deus’

Dia
Março 12, 2018

O dia foi de chumbo em sua mansa calma.

E foi um rio bem fundo em que as palavras,

à partida discretas, mais pesaram.

E a morte percutiu (coexistiu)

num gume de espada incendiada.

E as pedras afluíram (confluíram)

num sulfuroso rosto à beira d’água.

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João Rui de Sousa

Porto sentido
Janeiro 2, 2018

porto

Quem vem e atravessa o rio

junto à serra do Pilar,

vê um velho casario

que se estende até ao mar.

.

Quem te vê ao vir da ponte

és cascata sanjoanina

erigida sobre um monte,

no meio da neblina.

,

Por ruelas e calçadas,

da Ribeira até à Foz,

por pedras sujas e gastas

e lampiões tristes e sós.

.

Esse teu ar grave e sério,

num rosto de cantaria

que nos oculta o mistério

dessa luz bela e sombria.

.

Ver-te assim abandonado

nesse timbre pardacento,

nesse teu jeito fechado,

de quem mói um sentimento.

.

E é sempre a primeira vez,

em cada regresso a casa,

rever-te nessa altivez

de milhafre ferido na asa.

Carlos Tê

Tu és a terra
Julho 20, 2017

 

Tu és a terra em que pouso.
macia, suave, terna, e dura o quanto baste
a que teus braços como tuas pernas
tenha de amor a força que me abraça.

És também pedra qual a terra às vezes
contra que nas arestas me lacero e firo,
mas de musgo coberta refrescando
as próprias chagas de existir contigo.

E sombra de árvores, e flores e frutos,
rendidos ao meu gosto e meu sabor.
E uma água cristalina e murmurante
que me segreda só de amor no mundo.

És a terra em que pouso. Não paisagem,
não Madre Terra ou raptada ninfa
de bosques e montanhas. Terra humana
em que me pouso inteiro e para sempre.

lilás

Jorge de Sena